sexta-feira, 23 de abril de 2010

(Trecho de "O Pequeno Príncipe" - de Saint-Exupéry)



Bom dia, disse ele.

—Bom dia, disseram as rosas.
— Quem sois ? perguntou o príncipe
— Somos rosas.

— Ah! exclamou o principezinho...

E ele sentiu-se extremamente infeliz. Sua flor lhe havia contado que ela era a única de sua espécie em todo o universo.

E eis que haviam cinco mil, igualzinhas, num só jardim!

"Eu me julgava rico de uma flor sem igual,

e é apenas uma rosa comum que eu possuo...

Isso não faz de mim um príncipe muito grande...

" E, deitado na relva ele chorou.

Foi então que apareceu a raposa:

—Bom dia, disse a raposa.
— Bom dia, respondeu polidamente o principezinho.
— Quem és tu? Tu és bem bonita...
— Sou uma raposa, disse a raposa.
— Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste.

— Eu não posso brincar contigo, disse ela. Não me cativaram ainda

—Que quer dizer "cativar" ?
— É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
— Criar laços ?

—Tu és ainda para mim um garoto igual a cem mil outros garotos.
E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim.
Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas se
tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim ÚNICO no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
E a raposa continuou:
— Minha vida é monótona. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros.

Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música.

E depois, olha!

Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil.

Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste!

Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado.

O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti.

E eu amarei o barulho do vento no trigo...

— Por favor... cativa-me! - disse a raposa.

— Bem quisera, disse o principezinho. Mas tenho pouco tempo

e amigos a descobrir e coisas a conhecer.

— A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa.

Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma.

Compram tudo pronto na lojas.

Mas como não existem lojas de amigos, eles não têm mais amigos.

Se tu queres um amigo, cativa-me !

— Que é preciso fazer ?

— É preciso ser paciente. Sentarás primeiro longe. Eu te olharei e tu não dirás nada.

A linguagem é fonte de mal-entendidos.

Mas cada dia sentarás mais perto... E virás sempre na mesma hora.

Se tu vens às 4, desde às 3 eu começarei a ser feliz.

Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz.

Às 4 horas, então, eu estarei inquieta e agitada:

descobrirei o preço da felicidade.

Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de

preparar o coração...

Assim, o principezinho cativou a raposa.

Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:

— Ah! Eu vou chorar.

— A culpa é tua, disse o principezinho. Eu não queria te fazer mal,

mas tu quiseste que eu te cativasse...

— Quis.

— Mas tu vais chorar !

— Vou.

—Então não sais lucrando nada!

—Eu lucro, por causa da cor do trigo.

Depois refletiu ainda:
—Vais rever as rosas e volta. Tu compreenderás que a tua é ÚNICA no mundo.

E ele disse às rosas:

— Vós não sois iguais à minha rosa, vós não sois nada.

— Ninguém vos cativou e nem cativastes ninguém.

—Sois como era a minha raposa, mas eu fiz dela um amigo.

—Agora ela é ÚNICA no mundo.

—Sois belas, mas vazias... A minha rosa sozinha é mais importante que vós todas.

—Foi dela que eu cuidei, ela é a minha rosa!

—Adeus, disse ele.

— Adeus, disse a raposa.

—Eis o meu segredo: Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Foi o

tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante.

Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer.

Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.

TU ÉS RESPONSÁVEL PELA ROSA...

— Sou responsável pela minha rosa...repetiu ele a fim de se lembrar...

GATO GAMBOSINO, OU A ARTE DE BEM ENSINAR



O Professor Whitson ensinava ciências no 6º ano. No primeiro dia de aula ele nos falou sobre um tal gato gambosino, desadaptado animal noturno que sucumbira durante a Era Glacial. Enquanto falava, um crânio passava de mão em mão entre os alunos, para observação. Todos tomamos notas e depois houve um teste.

Quando ele me devolveu o meu, fiquei chocado. Todas as respostas tinham um grande X em vermelho por cima. Eu havia me dado tremendamente mal. Tinha de haver algum engano naquilo! Eu havia escrito exatamente o que o professor nos dissera! Depois percebi que todo mundo na classe tinha errado. Que teria acontecido?

Muito simples explicou o professor. Embora ele tivesse feito aquela longa dissertação sobre o gato gambosino, tal animal nunca existira. Assim, a informação contida em nossos apontamentos era incorreta. Certamente que não estávamos à espera de uma boa nota por respostas erradas!

Não preciso dizer que ficamos furiosos. Que tipo de teste era aquele? E que tipo de professor?

Devíamos ter percebido a coisa, nos explicou o professor Whitson. Além do mais, não nos dissera ele, no preciso momento em que passava o crânio do gato gambosino ( na realidade o crânio de um gato) pela turma que não restavam quaisquer vestígios do animal? Descrevera a sua incrível visão noturna, a cor do pêlo e muitos outros fatos que nunca poderia conhecer. Nem o nome ridículo que dera ao animal (felino malandro, em inglês) nos fizera suspeitar. Os zeros de nossas provas iam ser escritos em nossa caderneta. E forma mesmo.

O professor Whitson disse esperar que tivéssemos aprendido algo com aquela experiência. Os professores e os manuais escolares não são infalíveis. De fato ninguém o é. Sugeriu-nos jamais nos deixarmos repousar a nossa mente e pediu para que lhe disséssemos sempre que achássemos que ele ou um livro estavam errados.

Cada aula do professor Whitson era uma aventura. Ainda me lembro de algumas delas quase do princípio ao fim. Um dia, ele nos disse que seu Volkswagen era um organismo vivo. Levamos dois dias elaborando uma refutação que ele achasse aceitável. E ele não nos deixou parar de exercitar nossa argumentação até lhe termos provado não só que sabíamos que o que era um organismo vivo, mas também que tínhamos firmeza para defender o que era verdade.

Levamos aquele ceticismo recém-aprendido para as outras aulas. O que causava problemas ao resto do corpo docente, pouco habituado a ser posto em causa. Por exemplo, no momento em que nosso professor de História estava discorrendo sobre um assunto qualquer, ouviam-se pigarros e alguém dizia baixinho: “Gato-Gambosino”.

Não fiz nenhuma grande descoberta científica, mas as aulas do Sr. Whitson deram a mim e a meus colegas de classe, algo tão importante quanto isto: a coragem de olhar as pessoas nos olhos e dizer-lhes que não estavam certas. Ele também nos mostrou que é possível a gente se divertir fazendo isso. Mas nem todo mundo vê valor em tal coisa. Uma vez, falei sobre o Sr. Whitson a um professor primário e ele ficou horrorizado. “Ele não devia ter enganado vocês assim!”, exclamou. Olhei-o bem nos olhos e lhe disse que estava errado.

(1990 de David Owen, condensado de “Life”)

Trechos do texto “A CASA – A ESCOLA”,
extraído do livro: Por uma educação romântica de Rubem Alves.

Uma professora me escreveu pedindo que eu lhe desse algumas dicas sobre como despertar o interesse dos seus alunos sobre sua matéria. Sua pergunta brotava do seu sofrimento. Preparava suas aulas como havia aprendido nas aulas de didática – mas suas aulas não eram capazes de seduzir a imaginação dos seus alunos. Numa situação como essa o mais fácil e o mais comum é culpar os alunos: eles são indisciplinados, não querem aprender, são psicologicamente incapazes de concentrar a atenção. Essa professora não culpava os alunos. Culpava a si mesma. Devia haver algo de errado em suas aulas para que os alunos não prestassem atenção.
Uma aula é como comida. O professor é o cozinheiro. O aluno é quem vai comer. Se a criança se recusa a comer pode haver duas explicações. Primeira: a criança está doente. A doença lhe tira a fome. Quando se obriga a criança a comer quando ela está sem fome, há sempre o perigo de que ela vomite o que comeu e acabe por odiar o ato de comer. É assim que muitas crianças acabam por odiar as escolas. O Vômito está para o ato de comer assim como o esquecimento está para o ato de aprender. Esquecimento é uma recusa inteligente da inteligência. Segunda: a comida não é a comida que a criança deseja comer: nabo ralado, jiló cozido salada de espinafre... O corpo é um sábio. O corpo não é um porco que come tudo o que jogam para ele, como se tudo fosse igual. Ele opera com um delicado senso de discriminação. Algumas coisas ele deseja. Prova. Se são gostosas, ele come com prazer e quer repetir. Outras não lhe agradam, e ele recusa. Aí eu pergunto: “O que se deve fazer para que as crianças tenham vontade de tomar sorvete?”. Pergunta boba. Nunca vi criança que não estivesse com vontade de tomar sorvete. Mas eu não conheço nenhuma mágica que seja capaz de fazer com que uma criança seja motivada a comer salada de jiló com nabo. Nabo e jiló não provocam sua fome.
As crianças têm, naturalmente, um interesse enorme pelo mundo. Os olhinhos deles ficam deslumbrados com tudo o que vêem. Devoram tudo.
... Quando eu era jovem e não sabia que os olhos das crianças eram diferentes dos olhos dos adultos eu ficava bravo com meus filhos quando a gente viajava. Eu olhava para fora do carro e ficava deslumbrado com cenários que via: montanhas, lagos, florestas. Queria que eles gozassem aquela beleza. Mostrava para eles e era como se ela não existisse. Eles nem ligavam. E eu ficava como raiva. “Como podem ser insensíveis a tanta beleza?”.
Eu não sabia que os olhos das crianças não têm fome de coisas que estão longe. Os olhos das crianças têm fome das coisas que estão perto. As crianças querem pegar aquilo que vêem. Cenários não podem ser pegos com a mão.
... Todos os objetos que podem ser pegos com a mão são brinquedos para as crianças. E por isso elas gostam deles. Estão naturalmente motivadas por eles. Querem come-los. Querem conhece-los.
... Para mim, esse é um princípio fundamental da aprendizagem: a fome de aprender acontece na fronteira entre o corpo e o ambiente. As crianças não se interessam por montanhas, lagos e florestas porque estão longe dos seus braços. Mas tem prazer em subir em árvores, apanhar frutas, descobrir ninhos, brincar nos remansos, pescar. As crianças se interessam por objetos com os quais os seus corpos podem estar em contato, que podem ser manipulados. Elas não têm um interesse natural por operações matemáticas abstratas. Mas se estão vendendo pipas na feira, elas se interessam logo por somar e diminuir para contabilizar preços e trocos. E que dizer da forma que elas aprendem a falar? Coisa mais assombrosa não existe! Elas não aprendem a falar abstratamente. Aprendem o nome dos objetos e pessoas ao seu redor, os verbos indicam as atividades que fazem. Quando a criança diz “mamãe” ela está chamando para si um objeto querido. A princípio toda palavra é uma invocação.
Aí elas vão para a escola. Aí a aprendizagem sai da vida e passa para os programas. Programas são séries de conhecimentos organizados abstratamente numa ordem lógica. Mas a ordem dos programas, por terem sido preparados abstratamente, não segue a ordem da vida. Aparece então o descompasso. O que elas têm de aprender não é aquilo que o corpo delas quer aprender, pela simples razão de que a vida não segue programas. Aí surge a pergunta: como motivá-las a comer nabo e jiló? Vocês podem imaginar como é que se ensinaria uma criança a falar, seguindo-se um programa? Ela não aprenderia nunca.
Não gosto de laboratórios nas escolas. Sua função não é ensinar ciência. Sua função é seduzir os pais. Os pais querem sempre o melhor para os seus filhos e o que é moderno deve ser melhor. Uma escola que tem laboratórios com aparelhinhos deve ser uma boa escola. Mas os laboratórios, antes que os estudantes entrem nele, já ensinaram uma coisa fatal para a inteligência científica: que a ciência é algo que acontece dentro daquele espaço. A ciência não começa com aparelhos. Ela começa com olhos, curiosidade e inteligência.
Sonho com uma escola que tenha a casa de morada da criança com seu laboratório. A casa é o seu espaço imediato. Ela está cheia de objetos e ações interessantes. Pensar a casa é pensar o mundo onde a vida de todo dia está acontecendo.Numa casa não poderia haver um currículo pronto porque a vida é imprevisível: não segue uma ordem lógica. Os saberes prontos ficariam guardados num lugar, como as ferramentas ficam guardadas numa caixa. As ferramentas são tiradas da caixa quando elas são necessárias para resolver problemas. Assiim são sôo saberes: ferramentas. Ninguém aprende ferramenta para aprender ferramenta. O sentido da ferramenta é o seu uso na prática. Se não pode ser usado não tem sentido. Deve ser jogado fora.